O olhar sensível de Lucia Berlin em 'Manual da Faxineira'

"O tempo para quando alguém morre. Claro que para para quem morre, talvez, mas para quem fica de luto o tempo entra em parafuso. A morte vem cedo demais. Ela esquece das marés, dos dias que estão ficando mais curtos ou mais longos, da lua." 
(p. 478)

     A autora Lucia Berlin (1936-2004) publicou, ao longo de sua carreira, 76 contos, desses, 43 estão reunidos na coletânea Manual da Faxeira, organizado por Stephen Emerson. Essa coletânea, originalmente de 2015 e publicada em 2017 pela editora Companhia das Letras com tradução de Sonia Moreira, foi eleita como o melhor livro do ano por inúmeros veículos de comunicação (The Guardian, The Independent, El País, The Paris Review Daily, entre outros), o que projetou luz a autora que estava no esquecimento e trouxe de volta uma escritora de escrita pungente e que, já na década de 1960 fazia o que hoje está muito em alta: a autoficção.

     A principio, a capa em tom rosado em alusão também ao que seria um manual de fato pode enganar um leitor desatento em uma livraria e, consequentemente, afastá-lo, afinal, não são todos que possuem o interesse por aprender a arte da faxina, embora, em qualquer ambiente, seja uma ação necessária para, como muitos afirmam, manter a ordem das coisas. Porém, o livro da Lúcia Berlin está longe de ensinar os segredos da limpeza, ao contrário disso, a coletânea está mais focada em destrinchar momentos de personagens, em sua maioria femininas, passando por situações inusitadas e em alguns momentos desconcertantes tanto para elas quanto para os leitores.

"O dia em que meu pai matou minha mãe foi também o dia em que ele parou de me reconhecer." 
(p. 82)

     As histórias de Lucia Berlin são de uma tranquilidade ímpar de serem lidas, aqui, não há nada que não esteja fincado com os pés no chão, a verossimilhança delas são tão plausíveis que desconfiamos que todas foram escritas a partir das suas vivencias e memórias. Apesar dessa tranquilidade, seus contos em nenhum momento possui a parte chata ou enfadonha, eles partem de histórias simples, pessoas comuns, empregadas domesticas, alcoólatras, drogados, enfermeiras, crianças tentando se enquadrar em escolas conservadoras e mulheres que não estão preparadas para a gestação ou vivem em relacionamentos abusivos. Os contos também possuem os seus momentos difíceis que são de partir o coração, ou crus demais em descrições que mexem com o leitor, como em "Dr. H. A. Moynihan", com a descrição do arrancar de dentes:

"Começou a extrair o resto dos dentes de baixo mesmo sem o espelho. O som era como o de raízes de árvores sendo arrancadas do solo congelado no inverno. Gotas de sangue caíam na bandeja, ploc, ploc, e na placa de metal onde eu estava sentada. 
Ele começou a rir tão alto que eu achei que ele tinha enlouquecido. Depois, desabou em cima de mim. Assustada, eu dei um pulo tão grande que o empurrei de volta para a cadeira inclinada. "Arranca o resto!", ele disse, arfanto. Eu estava com muito medo e, por um instante, fiquei me perguntando se seria assassinato se eu arrancasse os dentes restantes e ele morresse.
(p. 20-21)

     São contos em hospitais, centros de desintoxicação, lavanderias, consultórios médicos que se passam em cidades e lugares em que a autora viveu como Novo México, Cidade do México, Nova York, Arizona, Alasca, Idaho, Montana, Arizona, Chile, Califórnia, e outros, fruto de suas mudanças em inúmeros trabalhos para sustentar seus quatro filhos e a escrita.

     O que esses contos transpassam é um olhar aguçado, uma autora que viveu e se debruçou sobre vidas alheias e consegue traduzir as histórias com muita profundidade nas narrativas que possuem um tom irônico, mas sem julgamentos partidos do narrador, sem dar sua opinião sobre os fatos, mas que consegue ser envolvente. A autora mostra que cada um sabe a dor e a delicia de ser o que é, e também mostra que até funerais conseguem ser divertidos. Dentro de alguns contos, narradores acabam dando "dicas", ou forma de se fazer escrita, como no conto "Ponto de Vista":

"Vai pensa, bom, se o narrador acha que há alguma coisa nessa criatura melancólica sobre a qual vale a pena escrever, então deve haver mesmo. E vai continuar a ler para ver o que acontece. 
Só que não acontece nada. Na verdade, a história ainda nem foi escrita. O que eu espero consegui fazer é, por meio da utilização de detalhes intricados, tornar essa mulher tão verossímil que você não tenha como deixar de se compadecer dela. 
A maioria dos escritores usa acessórios e cenários retirados de sua própria vida." 
(p. 67)

     O Manual da Faxineira é uma descoberta maravilhosa. Ao ritmo da leitura, a impressão que nos transmite é de que estamos acompanhando o amadurecimento e desenvolvimento da autora através de inúmeras personagens, que inclusive reaparecem em contos posteriores, o que dá uma unicidade e a ideia de que todas as histórias estão ligadas por um fio condutor: a vida, cheia de altos e baixos, de Lucia Berlin.

     Se ela fazia ou não autoficção, não era bem o que lhe preocupava, inclusive ao final da obra há um texto de Lydia Davis que traz o relato de um dos filhos da Berlin, revelando que “As história e lembranças da nossa família foram sendo lentamente remodeladas, embelezadas e editadas, a ponto de muitas vezes eu não saber ao certo o que realmente aconteceu. Lucia dizia que isso não tinha importância: o que importa é a história”. Além do excelente texto da Davis, a edição conta com um posfácio de Stephen Emerson, responsável pela organização dos contos e um grande amigo da autora.

    Esse é um livro mais do que recomendado, principalmente para quem gosta de contos sobre personagens profundos e histórias inusitadas para sair da zona de conforto. Vale a pena conferir.

Título: Manual da Faxineira
Título originalA Manual for Cleaning Women (2015)
Autora: Lucia Berlin
Tradução: Sonia Moreira
Editora: Companhia das Letras
Edição: 1
Ano: 2017
ISBN: 9788535928112
Gênero: Contos / Ficção
Páginas: 536

Avaliação: 

Resenha de número #397



Até breve,
Pedro Silva


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